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Onde Anda a Velha Duplicata?

Fernando Cafruni André - 05.03.2019

Na minha atividade como professor do Departamento de Ciências Contábeis e Atuariais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em Porto Alegre leciono para alunos dos Cursos de Ciências Contábeis e Administração. Uma de minhas Disciplinas é Técnica Comercial e abordo em uma das Unidades do Currículo o tema Títulos de Crédito. 

Com certa perplexidade (já deveria ter me acostumado) quando pergunto se alguém sabe o que é uma duplicata ou mesmo se já tenha visto alguma vez esse documento, obtenho apenas cerca de 5 a 10 % de respostas positivas, num ambiente aproximado de 50 alunos que compõem a Turma.

Talvez o leitor esteja se perguntando: “E daí ? o que tem isso de importante ?”

A importância vem do desconhecimento de um título de crédito fundamental nas operações comerciais de compra e venda a prazo, cujo documento básico representativo do valor e crédito parcial ou total da transação é exatamente expresso através de uma ou mais simples (nem tão simples assim) duplicatas. 

Para os Contadores em especial, o conhecimento dos Títulos de Crédito e especificamente a duplicata é muito importante, pois é usual Contadores assumirem simultaneamente a Gerência Financeira da empresa, como foi o caso do autor por vários anos no cargo de Gerente Contábil Financeiro de Estaleiro de Construção Naval. 

Para desenvolver esse tema sobre tão importante documento na vida das empresas, é necessário primeiro entender o que é um título de crédito. 

O crédito está ligado à ideia de confiança, um ato de fé do credor para com o devedor, conforme bem demonstra sua origem do latim –creditum, credere – que significa confiança. 

Tamanha era a importância dada a esse aspecto da confiança que no antigo Direito Romano, base do nosso Direito Brasileiro e de outras nações, se um devedor não cumprisse sua obrigação assumida, o credor não poderia valer-se do patrimônio do devedor para ressarcir seu prejuízo, mas poderia, em compensação, decidir entre duas alternativas sui generis: vender o devedor em praça pública ou matá-lo, também em praça pública, para deixar claro à comunidade local que aquele sujeito falhou com seu compromisso de confiança. 

Imaginem se essa prática ainda estivesse em vigor!  Teríamos um cadafalso e um carrasco em cada frente de loja ou banco! E possivelmente também um Leiloeiro apregoando e coletando lances para a venda dos inadimplentes! 

Ao contrário do que poder-se-ia supor, o crédito não é um agente de produção de riqueza, mas sim de transferência de riqueza de A para B. É um instrumento de circulação do crédito, fazendo o girar por diversas mãos e cumprir seu papel.

O Código Civil Brasileiro de 2002 diz em seu artigo 887 que título de crédito é   ...documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido...

Para compreensão do sentido desse conceito dado pelo Código Civil vamos extrair e explicar os três princípios fundamentais dos títulos de crédito nele contido.

Princípio da literalidade – do Latim, lettera esse princípio significa que o título de crédito vale por aquilo que nele estiver escrito, de acordo com os preceitos da lei que o criou. Não se admitem nos títulos palavras escritas que contrariem esses preceitos, sob pena de nulidade. 

Princípio da autonomia – por esse princípio o título de crédito se desvincula da causa que lhe deu origem, devendo ser honrado seu pagamento ao possuidor de direito. Um exemplo bem simplório ajudará a explicar melhor esse princípio. Paulo emitiu um cheque (que também é um título de crédito) em favor de Roberto para pagamento de uma dívida entre eles. Roberto endossou o título para Marcelo. Paulo, emitente do cheque, é inimigo de Marcelo, mas nem por isso poderá negar o pagamento do cheque endossado, mesmo que deteste a pessoa de Marcelo, pois o título tem vida própria e questões como essa não afetam sua obrigação legal, que deve ser cumprida, sob as penas da lei.

Princípio da cartularidade – também originado do Latim, cártula, que significa carta, papel, documento, esse princípio diz que o título de crédito obrigatoriamente deve se materializar em um documento para que possa ser exigido o crédito nele representado. E esse certamente é o princípio que mais causa problema nos dias atuais no que tange à duplicata, como veremos logo adiante. 

Voltemos agora à duplicata. 

A duplicata é uma criação genuinamente brasileira surgida no Código Comercial Brasileiro de 1850, artigo 219. Surgiu como instrumento para garantir o cumprimento da obrigação assumida e fazer valer os direitos do comprador e vendedor, por um processo coativo enérgico. Nas vendas a prazo, o vendedor cumpre a sua obrigação de entregar o bem vendido. O comprador só realizará a sua obrigação de pagar posteriormente, conforme os prazos acertados previamente. Há entre o vendedor e o comprador um pacto de confiança, materializado por um título de crédito – duplicata, por meio do qual se usa o crédito para a efetivação da compra e venda. 

A duplicata ainda segue os ditames da Lei 5.474 - 18/07/1968. Segundo essa lei de caráter federal, em seu artigo primeiro, o vendedor poderá, nas vendas com prazo não inferior a 30 dias, extrair fatura para apresentação ao comprador. O artigo segundo complementa dizendo que, à opção do credor, poderá ser extraída uma duplicata para circulação do crédito. 

Não se admite nas leis brasileiras que tratam de títulos de crédito qualquer outra espécie de título para representar a compra e venda que não seja a duplicata. Por isso, muitas pessoas que assinam promissórias em lojas como garantia de crediário acabam se complicando e, às vezes, tendo que pagar novamente por algo que já pagaram, pois a nota promissória, pelo princípio da autonomia, se desvincula da causa que lhe deu origem, não tendo como vinculá-la à compra efetuada e paga pelo carnê das prestações. Desse modo, fica o devedor com o carnê quitado, comprovando que pagou pela compra, mas sem prova de pagamento da promissória, caso não a exija de volta na loja quando terminar o pagamento do carnê. É claro que judicialmente pode-se tentar esclarecer o fato, mas isso envolve custas processuais, advogado, e a possibilidade de perder o processo e ter que pagar a promissória assim mesmo. 

A duplicata é uma cópia da Fatura, podendo esta ser desmembrada em quantas parcelas forem acertadas por ocasião da compra, através de várias duplicatas.  Aqui cabe uma observação importante: A fatura é uma obrigação de cunho comercial, enquanto que a nota fiscal é uma obrigação de caráter fiscal, servindo como instrumento fiscalizador das três esferas do fisco – municipal, estadual e federal. 

Mas voltemos ao início deste artigo onde demonstrava minha perplexidade com a falta de conhecimento dos meus alunos a respeito da duplicata. Vou tentar explicar como gradativa e inadvertidamente aconteceu este processo de descrédito e desuso da duplicata. 

Na década de 80 exerci funções de gerente contábil e financeiro em um grande estaleiro de construção naval. Uma de minhas atribuições era gerenciar a Tesouraria, onde tive muito contato com duplicatas, tanto a pagar como receber. Pude constatar na prática como a lei das duplicatas funcionava ou, pelo menos, como deveria funcionar. Após a venda efetivada conforme negociação prévia entre comprador e vendedor, este procederá à entrega das mercadorias objeto da transação com a respectiva emissão da Nota Fiscal e da Fatura (ou de ambas simultaneamente no caso de NF/Fatura). Para simplificação do raciocínio, suponhamos que o negociado tenha sido pagamento a 30 dias após a emissão dos documentos.

A lei estabelece prazos para que a duplicata seja apresentada ao comprador (devedor):

até 30 dias da emissão, se enviada diretamente pelo vendedor até 10 dias da data de recepção por representantes ou bancos 

Fixa ainda o prazo de 10 dias após a apresentação ao devedor para que este devolva a duplicata com o devido aceite ou com declaração expressa justificando a recusa do aceite. 

Aqui está o principal motivo para a mudança de hábitos dos empresários e

que acabaram modificando totalmente o uso da duplicata em nossos dias. 

O aceite é uma figura jurídica que torna a dívida líquida e certa. O procedimento correto no trato com duplicatas, títulos de crédito que são emitidos pelo credor, que o devedor confira o mesmo e dê aceite, concordando integralmente com os termos descritos no título. Para isso a lei fixou prazo para remessa do credor ao devedor e prazo para devolução do devedor ao credor com a assinatura e data do aceite, abaixo da seguinte frase: 

Reconheço a exatidão desta duplicata de Venda Mercantil na importância acima que pagarei à ___(nome do credor)_________ ou à sua ordem (na hipótese de endosso), na praça e vencimento indicados.

Na prática, o comprador (devedor) ao assinar este reconhecimento torna a dívida líquida e certa, ou seja, dá o aceite ao título. 

 Abaixo segue a imagem de uma típica duplicata com as indicações de seu conteúdo:  


A lei 6458 de 1977 veio a dar nova redação ao artigo 15 da Lei 5474/68 e criou a possibilidade do aceite tácito, isto é, sem a assinatura do devedor, desde que ele deixe passar o prazo de 10 dias estipulado para a devolução sem qualquer comunicação escrita ao credor, externando sua negativa com base em uma das possibilidades aventadas na lei:

I – Avaria ou não recebimento das mercadorias, quando não expedidas ou não entregues por sua conta e risco.

II – Vícios, defeitos e diferenças na qualidade ou na quantidade das mercadorias.

III – Divergência nos prazos ou nos preços ajustados. 

A verdade é que o empresariado passou a orientar suas tesourarias para não darem aceite escrito nas duplicatas, talvez com algum dolo intencional para se furtar ao pagamento antes de conferir a mercadoria entregue (muitas vezes a fatura e as duplicatas chegavam antes da mercadoria) ou para ganhar tempo adicional no prazo de pagamento. Com o passar do tempo essa prática veio a se tornar comum, ou seja, praticamente ninguém mais assinava o aceite nas duplicatas. Dessa forma, os vendedores pararam de enviar as duplicatas para que fosse dado o aceite em função de que ele não era dado mesmo e com isso evitavam o procedimento de, caso não pago o título, ter que emitir triplicata para poder cobrar o valor de seu crédito, já que a duplicata ficara retida pelo devedor. 

Outro fator fundamental, impulsionado pelo rápido crescimento da tecnologia da informática desde o final da década de 80 e se acentuando de forma marcante na década de 90, foi a automatização dos processos operacionais e administrativos nas empresas.

Em função do que já vinha acontecendo, conforme relato acima, a comodidade da tecnologia praticamente “decretou” o fim da prática prescrita na lei de enviar as duplicatas para a assinatura do aceite. As empresas começaram a gerar seu faturamento de forma eletrônica, encaminhando os títulos para cobrança bancária por meio magnético através de uma linha de dados ou mesmo pela Internet através dos softwares de cobrança desenvolvidos e disponibilizados pelos bancos que se aprimoraram tanto que atualmente o setor de contas a receber das empresas administra sua carteira de cobrança sem precisar ir ao banco. O banco por sua vez, quando emite o boleto de cobrança a partir dos dados enviados pelas empresas, coloca alguma observação para que este boleto faça referência à Nota Fiscal e à Fatura de origem, muitas vezes, dizendo que: ....este boleto substitui a duplicata n.º xyz..... o que é totalmente irregular, desrespeitando frontalmente a lei das duplicatas, porem prática largamente utilizada. 

A consequência disso é que essa prática, por ironia, acaba favorecendo o devedor mal intencionado que alega em sua defesa, em ações judiciais de sequestro* de títulos, que a duplicata não lhe foi apresentada para dar aceite, contrariando a lei das duplicatas e ainda o próprio Código Civil, pois com essa prática de substituir a duplicata por um mero boleto, desrespeita o princípio da cartularidade (mencionado anteriormente) que exige que o título de crédito se materialize em um documento e esse documento deve seguir os ditames da lei. O boleto, em termos legais, não substitui a duplicata, apenas representa um valor que supostamente estaria descrito na mesma. O correto seria enviar o boleto acompanhado da duplicata, como era feito há muitos anos.

* Sequestro de Títulos ou Sustação de Protesto – ação impetrada pelos devedores por meio de advogado, visando obter liminar para suspender a decretação de protesto pelo cartório por meio de uma medida cautelar, liminar essa se o julgador assim entender, concedida por juiz de plantão que no prazo de 30 dias deverá julgar o mérito da ação.

Dessa forma, inúmeros processos que abarrotam o nosso já moroso processo judiciário, poderiam ser evitados se fosse seguida a lei das duplicatas. Aí alguém poderá alegar, “mas essa lei está completamente defasada!”. E é a mais pura verdade. Mas qual seria a solução então? Muito simples (ou nem tanto) – a solução viria pela modificação da lei, através de um Projeto encaminhado pelo Executivo ou por iniciativa própria de algum membro do Congresso Nacional (Deputado Federal ou Senador), adaptando os usos e costumes e dando nova forma à Lei das Duplicatas. 

Quem sabe não estaria aí um bom motivo para a Classe Contábil se arregimentar e sugerir este novo Projeto para que este importante e fundamental Título de Crédito ganhasse nova vida e reconquistasse sua utilidade.

Dúvidas e comentários podem ser encaminhados para  

Fernando Cafruni André 

fernando@universalsaude.com

Prof. da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Departamento de Ciências Contábeis e Atuariais

Disciplinas de

èTécnica Comercial

èContabilidade para Pequenas e Médias Empresas

èProfissão Contábil e Contemporaneidade (Ética e Normatização na Profissão de Contador) 

èOrientador de alunos para elaboração de TCC 


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